quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Delegado e Preto Rico ofuscam a chuva

No último domingo, a chuva foi o centro das atenções em boa parte do Rio de Janeiro. Porém, na Mangueira, ela foi solenemente ignorada durante o encontro anual das três grandes alas da escola - Boêmios, Periquitos e Só Para Quem Pode.

O evento, apesar do caráter obviamente festivo, rendeu belíssimas homenagens a duas grandes figuras da agremiação: o mestre-sala Delegado e o compositor Preto Rico.

Graças à presença radiante desses dois patrimônios do samba, pode-se afirmar que a tarde foi de sol na Mangueira.


quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Quem guardará o samba?

O documentário "O mistério do Samba", que estreou em 29 de agosto nas salas cariocas de cinema, é uma excelente oportunidade para quem deseja conhecer um pouco mais da alma do subúrbio do Rio de Janeiro e de seus habitantes. Ao retratar o cotidiano dos integrantes da Velha Guarda da Portela, o filme permite que o espectador se emocione com histórias de um outro tempo. De um outro Rio.

Antes de mais nada, impressiona a relação íntima que os personagens possuem com a música. O ato de compor para eles é a coisa mais natural do mundo. É simplesmente a manifestação de um sentimento, que é despertado pelos acontecimentos mais banais do dia-a-dia, como as brigas com a mulher, os pagodes, o trabalho (ou a falta dele), os personagens engraçados que surgem... Qualquer tema é motivo de inspiração. Sem firulas.

No entanto, a película causa também uma certa melancolia ao se perceber que existe um hiato intransponível entre essa turma e a nossa geração. Estamos em um outro tempo, outro século, onde tudo é muito corrido: "a gente se fala", "hoje não dá", "me liga mais tarde"... Estamos numa outra cadência.

A Velha Guarda quer passar o bastão, mas quem estará lá para recebê-lo? Quem guardará o samba?



domingo, 7 de setembro de 2008

João Nogueira – E Lá Vou Eu (1974)

Em 1974, João Nogueira já havia obtido respeito como compositor: tinha canções registradas nas vozes de Clara Nunes e Elizeth Cardoso, além de integrar – há três anos – a Ala de Compositores da Portela. A agremiação de Oswaldo Cruz, aliás, foi para ele realmente a “Escola de Samba”: na adolescência, foi freqüentador assíduo dos ensaios, onde tomou contato e aprendeu com os bambas da azul e branca, entre eles Candeia, Casquinha e Walter Rosa.

E Lá Vou Eu, lançado nesse ano, é um disco que destaca o lado autoral de João, que, com o passar dos anos, perderia espaço para o intérprete: dez das doze faixas do LP são de sua autoria – sozinho ou em parceria. Nas composições conjuntas, vale destacar seu encontro com o letrista Paulo César Pinheiro, que rendeu cinco faixas para o disco e deu início à parceria mais sólida e constante da carreira do artista. “Gosto de trabalhar com o Paulinho. Até conhecê-lo não acreditava naquilo: dar a música pra fazer a letra e vice-versa”, afirmou, certa vez, o sambista.

A música que abre o LP é justamente uma composição da dupla: a faixa-título “E Lá Vou Eu (Mensageiro)”, que ficou pronta durante as gravações do disco. Nela, João canta: “E lá vou eu/ melhor que mereço/ pagando a bom preço/ a evolução”. A cadência é lenta e o dedilhado do violão convida o ouvinte para um passeio com o personagem da canção, andarilho sem destino. No final, ele constata – ciente do papel do samba como elemento transgressor e representativo de um povo: “E lá vai minha voz/ espalhando então/ o meu samba guerreiro/ fiel mensageiro da população”.

Em “Batendo a Porta”, João dá mostras de sua genialidade quando se trata de dividir uma canção. Ora acelerando, ora retardando o ritmo, tem-se a impressão de que, a qualquer momento, ele vai atravessar o samba – o que nunca acontece. “Ele divide de maneira tal que ninguém, mesmo sabendo letra e música, consegue cantar com ele, ouvindo suas gravações”, reconhece Adelzon Alves, assistente de produção do disco, em texto na contra-capa do LP.

Trata-se de um artista que já nasceu pronto. E como tal, possui completo domínio de sua arte, mesmo nos momentos em que a descontração se impõe. Sua interpretação do clássico “Gago Apaixonado”, de Noel Rosa, impressiona: uma música de difícil execução, que João canta com o maior humor e naturalidade.

Noel Rosa, aliás, é uma referência importante na parte conceitual do disco. A foto da capa do LP mostra João Nogueira caminhando na madrugada, sozinho, em uma das ruas de Vila Isabel, cuja calçada reproduz partituras de canções de Noel. O título E Lá Vou Eu dá à fotografia um tom misterioso e enigmático. Afinal cabe perguntar: vai pra onde?

Talvez nem o próprio João soubesse, pois E Lá Vou Eu não indica um ponto de chegada. É, na realidade, uma exaltação à própria caminhada, com suas alegrias e decepções. Em alguns momentos, o disco reflete sobre as condições de vida num mundo que se modificava rapidamente.

Em 1974, o Brasil vivia sob regime militar e era um país que estava sendo projetado para ser “grande”. A classe média sonhava com uma casa própria e um Fusca. Ideal que João despreza em “Meu Canto Sem Paz”: “se não me bastassem problemas de amor/papéis importantes confundem a mente/é gente correndo, é conta corrente/corrida do ouro, progresso, sucesso/meu peito poeta rejeita esse jeito/e vai enfeitando de amor o meu verso/entenda meu samba, seja como for/eu vivo na vida correndo pro amor”.

Em outros momentos do disco, João Nogueira nos brinda com uma boa dose de malandragem despretensiosa: “Eu hein, rosa!” traz o sambista no melhor de sua forma, usando e abusando das divisões numa canção sobre um desencontro amoroso. “Partido Rico”, que cita até Chico Buarque, alfineta a classe média mais uma vez, mas agora num clima bem-humorado.

Para o fim do álbum, o cantor guardou uma pérola. A belíssima “Braço de Boneca”, canção de teor nostálgico, onde o músico Joel do Bandolim – na época, apontado como grande promessa de instrumentista – tem seu momento de destaque.

Para encerrar, como não poderia deixar de ser, o sambista exalta sua escola em “Eu Sei Portela”.

Por tudo isso, pode-se dizer que E Lá Vou Eu é o disco mais importante da carreira de João Nogueira, não só por reunir uma grande quantidade de sucessos, mas por ser o trabalho que estabeleceu sua condição de gênio do samba. Como compositor e intérprete.


domingo, 24 de agosto de 2008

Histórias da Fundação: Janjão & Pinaco

Foi num carnaval do início dos anos setenta. Nessa época, era proibida a venda das chamadas “bebidas quentes” na folia momesca. Só valia cerveja. Dois malandros de Deodoro, Janjão & Pinaco, tiveram uma idéia genial: por que não fazer umas batidinhas e disponibilizar pra galera, no sapatinho, a preços módicos?

Com a melhor das intenções, a dupla partiu pro Centro da cidade. Antes dos banheiros químicos de hoje em dia, a Prefeitura instalava uns “reservados” de madeira pros foliões se aliviarem. Foi ali que nossos heróis se abrigaram.

Talvez pelo lugar escolhido, talvez pela falta de divulgação prévia do produto... O fato é que o tempo passava e Janjão & Pinaco não vendiam uma dose sequer. Decepcionados com o fracasso da empresa, as figuras travam o seguinte diálogo:

Janjão – Aí Pinaco, num vendemo nada... É o seguinte: me dá uma dose.
Pinaco – Tá maluco? Isso aqui é pra gente vender!
Janjão – Calma... Tô com dinheiro,vou pagar.

Janjão então puxa uma moeda de 50 centavos e paga a dose. Pinaco, sem outra saída, recolhe o dinheiro e serve o parceiro. Meia hora depois, o quadro era o mesmo. Só Janjão havia consumido a batida.

Pinaco não resiste: Janjão, também vou tomar uma dose....
Janjão (irônico) – Mas tu não falou que era pra vender?
Pinaco – Eu também vou pagar.
Janjão – Como? Tu tá duro....

Pinaco puxa a moeda de 50 centavos de Janjão e paga a bebida.

Janjão – Então tá....

Logo depois, Janjão pede mais uma dose e paga com a moeda de 50 centavos. Em seguida, Pinaco faz o mesmo.

Nessa doce brincadeira, Pinaco & Janjão encheram a cara, com a moeda de 50 centavos trocando de mão a cada cinco minutos...

Quando chegaram em Deodoro, a rapaziada perguntou:

- E aí, se deram bem?
Janjão (doidão) – Fala pra eles, Pinaco... Vendemo pra caralho!
- É mermo? Faturaram quanto?
Pinaco (doidão) – 50 centavos...

Histórias da Fundação

Por volta de 1956, foi inaugurado, num projeto de iniciativa do presidente Getúlio Vargas, um conjunto de prédios no bairro de Deodoro. A idéia era disponibilizar apartamentos para pessoas de baixa renda. Além da insuficiência de recursos, cada família também deveria ter, no mínimo, quatro filhos.

O projeto recebeu o nome de Fundação da Casa Popular de Deodoro. Não eram imóveis do tipo “sala e penico” de hoje em dia. Os apartamentos tinham três quartos, sala espaçosa, uma cozinha que comporta mais de duas pessoas por vez... Não, eu não estou mentindo. Falo a verdade, tanto que vivo num deles.

Mas por que digo isso? Bem, um lugar que recebeu pessoas dos mais variados lugares, com as mais variadas histórias de vida, rende bons “causos”.

Eu vou, aqui no Suburbiando, contar alguns deles.

domingo, 17 de agosto de 2008

O vira-latas sentinela

O Samba da Ouvidor já se tornou programa obrigatório do carioca. Rola aos sábados, quinzenalmente, na Rua da Ouvidor - entre a Primeiro de Março e a Rua do Mercado -, no Centro do Rio. Começa lá pelas 14h e geralmente vai até às 19h, 19h30... Eu, que não sou bobo, parti pra lá outra vez. Num dia típico de verão, um calor infernal, não tem como ficar em casa. Quando cheguei - 16h, mais ou menos - o couro tava comendo: samba de primeiríssima qualidade, mulheres lindas, cerveja gelada...Enfim, o de sempre. Nesta última edição, o lugar estava visivelmente mais cheio (, lá pelas 19h a cerva acabou!), acho que foi por causa do Jornal O Dia, que falou do samba na edição de quinta-feira e deu destaque também no Guia de diversão que sai às sextas ( saiu na capa). Não por acaso, vi algumas pessoas com o tal guia na mão, tentando se situar.

Mas o que torna esse samba tão especial? Uma simples espiada na roda já revela parte da charada:são figuras de 20, 25 anos cantando sambas belíssimos do começo do século passado, conduzindo o apreciador em uma viagem por Mangueira, Madureira, Estácio, Vila Isabel... A preocupação do grupo, além de se divertir, é resgatar canções menos conhecidas de compositores que muitas vezes só têm notoriedade dentro de seus blocos ou escolas de samba. Mas há espaço também para "hits" (hahaha) de Cartola, Nelson Cavaquinho, Noel Rosa, Silas de Oliveira, Monarco...

Além disso, é um lugar aonde você vai e sente bem. Isso é um dado importantíssimo. Se tiver a fim de cantar perto da roda, é só chegar, se quiser ficar mais destacado, observando, sem problemas... Não existe violência, é 0-800... O esquema ideal.

Lá pelas 19h30, os caras começaram a improvisar no partido alto: o refrão era "Que samba é esse que acabou de chegar? / É partido alto, mas é pra quem sabe improvisar..." E dá-lhe improviso! Sensacional... Depois disso, o samba acabou. Porém, minha diversão não terminou ali. Mantendo a linha "bom, bonito e barato" de lazer, me mandei pra feira de São Cristóvão, que eu não conhecia. Impressionante....Que lugar grande! Você anda, anda, anda e o negócio não acaba. São dois palcos principais (se houver mais, me corrijam), enormes, com bandas de forró se apresentando e vários palcos pequenos - que eu não sei quantos são, mas são muitos - com grupos tocando. Diversos restaurantes, pra todos os gostos e bolsos.

Tem de tudo lá dentro: lojas de iguarias nordestinas, roupas típicas, CDs, barraquinhas que vendem literatura de cordel (comprei um livrinho)... Mais ou menos no centro da feira, uma dupla de repentistas estava improvisando, o que me fez lembrar do samba da ouvidor e me causou a agradável sensação de que, de algum modo, as coisas estão todas interligadas...

Quando desci da kombi, chegando em casa, um lance engraçado aconteceu: um cachorro começou a andar do meu lado, parecendo me escoltar. No meu normal, eu teria gritado um "Sai fora, cheio de pulga!", mas, não sei, eu simpatizei com o vira-latas... Fui caminhando e vendo até onde ele ia me seguir. Ele parou perto do lixo, pra fuçar, e eu pensei que fosse ficar nisso. Mas, percebendo que eu me afastava, o cachorro logo veio correndo e continuou "fazendo a minha segurança".

Sem sacanagem, de onde desci até o meu apartamento são uns cinco minutos de caminhada e, durante todo esse tempo, o vira-latas esteve ao meu lado. Quando virei a chave no portão, dei uma última olhada pro cachorro e posso jurar que ele piscou pra mim, como quem diz "tá entregue".

Ou será que foi impressão minha?