domingo, 7 de setembro de 2008

João Nogueira – E Lá Vou Eu (1974)

Em 1974, João Nogueira já havia obtido respeito como compositor: tinha canções registradas nas vozes de Clara Nunes e Elizeth Cardoso, além de integrar – há três anos – a Ala de Compositores da Portela. A agremiação de Oswaldo Cruz, aliás, foi para ele realmente a “Escola de Samba”: na adolescência, foi freqüentador assíduo dos ensaios, onde tomou contato e aprendeu com os bambas da azul e branca, entre eles Candeia, Casquinha e Walter Rosa.

E Lá Vou Eu, lançado nesse ano, é um disco que destaca o lado autoral de João, que, com o passar dos anos, perderia espaço para o intérprete: dez das doze faixas do LP são de sua autoria – sozinho ou em parceria. Nas composições conjuntas, vale destacar seu encontro com o letrista Paulo César Pinheiro, que rendeu cinco faixas para o disco e deu início à parceria mais sólida e constante da carreira do artista. “Gosto de trabalhar com o Paulinho. Até conhecê-lo não acreditava naquilo: dar a música pra fazer a letra e vice-versa”, afirmou, certa vez, o sambista.

A música que abre o LP é justamente uma composição da dupla: a faixa-título “E Lá Vou Eu (Mensageiro)”, que ficou pronta durante as gravações do disco. Nela, João canta: “E lá vou eu/ melhor que mereço/ pagando a bom preço/ a evolução”. A cadência é lenta e o dedilhado do violão convida o ouvinte para um passeio com o personagem da canção, andarilho sem destino. No final, ele constata – ciente do papel do samba como elemento transgressor e representativo de um povo: “E lá vai minha voz/ espalhando então/ o meu samba guerreiro/ fiel mensageiro da população”.

Em “Batendo a Porta”, João dá mostras de sua genialidade quando se trata de dividir uma canção. Ora acelerando, ora retardando o ritmo, tem-se a impressão de que, a qualquer momento, ele vai atravessar o samba – o que nunca acontece. “Ele divide de maneira tal que ninguém, mesmo sabendo letra e música, consegue cantar com ele, ouvindo suas gravações”, reconhece Adelzon Alves, assistente de produção do disco, em texto na contra-capa do LP.

Trata-se de um artista que já nasceu pronto. E como tal, possui completo domínio de sua arte, mesmo nos momentos em que a descontração se impõe. Sua interpretação do clássico “Gago Apaixonado”, de Noel Rosa, impressiona: uma música de difícil execução, que João canta com o maior humor e naturalidade.

Noel Rosa, aliás, é uma referência importante na parte conceitual do disco. A foto da capa do LP mostra João Nogueira caminhando na madrugada, sozinho, em uma das ruas de Vila Isabel, cuja calçada reproduz partituras de canções de Noel. O título E Lá Vou Eu dá à fotografia um tom misterioso e enigmático. Afinal cabe perguntar: vai pra onde?

Talvez nem o próprio João soubesse, pois E Lá Vou Eu não indica um ponto de chegada. É, na realidade, uma exaltação à própria caminhada, com suas alegrias e decepções. Em alguns momentos, o disco reflete sobre as condições de vida num mundo que se modificava rapidamente.

Em 1974, o Brasil vivia sob regime militar e era um país que estava sendo projetado para ser “grande”. A classe média sonhava com uma casa própria e um Fusca. Ideal que João despreza em “Meu Canto Sem Paz”: “se não me bastassem problemas de amor/papéis importantes confundem a mente/é gente correndo, é conta corrente/corrida do ouro, progresso, sucesso/meu peito poeta rejeita esse jeito/e vai enfeitando de amor o meu verso/entenda meu samba, seja como for/eu vivo na vida correndo pro amor”.

Em outros momentos do disco, João Nogueira nos brinda com uma boa dose de malandragem despretensiosa: “Eu hein, rosa!” traz o sambista no melhor de sua forma, usando e abusando das divisões numa canção sobre um desencontro amoroso. “Partido Rico”, que cita até Chico Buarque, alfineta a classe média mais uma vez, mas agora num clima bem-humorado.

Para o fim do álbum, o cantor guardou uma pérola. A belíssima “Braço de Boneca”, canção de teor nostálgico, onde o músico Joel do Bandolim – na época, apontado como grande promessa de instrumentista – tem seu momento de destaque.

Para encerrar, como não poderia deixar de ser, o sambista exalta sua escola em “Eu Sei Portela”.

Por tudo isso, pode-se dizer que E Lá Vou Eu é o disco mais importante da carreira de João Nogueira, não só por reunir uma grande quantidade de sucessos, mas por ser o trabalho que estabeleceu sua condição de gênio do samba. Como compositor e intérprete.


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